Haydn com batatas fritas. Retomo a audição dos velhos LPs e reencontro a Orquestra de Câmara de Praga (sem regente), na clássica etiqueta Supraphon: sinfonias n.º 73 e 96, La Chasse e The Miracle, respectivamente das fases Esterházy e londrina. Gravação de há décadas, prensagem regasta pelas agulhas, como se no estúdio, em fundo, um operoso cozinheiro estivesse a fritar batatas. Mas, em contrapartida, que prazer reouvir os discos antigos!... Concedo que o advento dos CDs veio trazer uma limpidez imbatível aos registos da chamada «grande música», mormente da orquestral; quanto ao resto, porém, prefiro ainda o vinil. Nos compactos, o som pasteurizou-se; limpo em demasia, tecnicamente perfeito, eventualmente, retirando-lhe a sujidade-ambiente que eu diria fazer parte da música.
O Haydn de Armstrong? Acontece-me estabelecer um paralelismo, muito pessoal e sem nenhum rigor, quando oiço ou penso em Sidney Bechet -- crioulo de Nova Orleães, figura cimeira das primeiras décadas do jazz, como músico principal ou acompanhante (no sax soprano ou no clarinete) e compositor (Petite Fleur é um tema conhecido em todo o mundo). Quando oiço Bechet, lembro-me de... Haydn, desse outro compositor de excepção, austríaco e cerca de século e meio mais antigo, com as suas cento e algumas sinfonias, além de muitas outras obras, das sonatas aos quartetos, concertos e oratórias. Para nosso bem, mas póstuma desvantagem (?) sua, Haydn e Bechet foram, respectivamente, contemporâneos de Mozart e Armstrong. E como as genealogias em arte se constroem (im)pacientemente, sem que se saiba quando o génio toca algum dos rebentos nos ramos das suas árvores, eis que um discípulo directo de Haydn surge e, milagre!, é dos poucos escolhidos que em toda a história da música conseguirá ombrear com Amadeus: Beethoven. No jazz as coisas então passavam-se de modo diferente, a transmissão de conhecimento era informal nas academias dos pobres. Teve Bechet o seu Beethoven no mundo da música improvisada afro-americana? Se ele for o Haydn de Armstrong, quem terá sido o seu Beethoven? Coltrane?