O Haydn de Armstrong? Acontece-me estabelecer um paralelismo, muito pessoal e sem nenhum rigor, quando oiço ou penso em Sidney Bechet -- crioulo de Nova Orleães, figura cimeira das primeiras décadas do jazz, como músico principal ou acompanhante (no sax soprano ou no clarinete) e compositor (Petite Fleur é um tema conhecido em todo o mundo). Quando oiço Bechet, lembro-me de... Haydn, desse outro compositor de excepção, austríaco e cerca de século e meio mais antigo, com as suas cento e algumas sinfonias, além de muitas outras obras, das sonatas aos quartetos, concertos e oratórias. Para nosso bem, mas póstuma desvantagem (?) sua, Haydn e Bechet foram, respectivamente, contemporâneos de Mozart e Armstrong. E como as genealogias em arte se constroem (im)pacientemente, sem que se saiba quando o génio toca algum dos rebentos nos ramos das suas árvores, eis que um discípulo directo de Haydn surge e, milagre!, é dos poucos escolhidos que em toda a história da música conseguirá ombrear com Amadeus: Beethoven. No jazz as coisas então passavam-se de modo diferente, a transmissão de conhecimento era informal nas academias dos pobres. Teve Bechet o seu Beethoven no mundo da música improvisada afro-americana? Se ele for o Haydn de Armstrong, quem terá sido o seu Beethoven? Coltrane?
Nunca morrer sem ouvir e re-ouvir, muitas vezes, o álbum Louis Armstrong Plays W. C. Handy -- qualquer coisa como o pai do jazz a homenagear e tocar o pai dos blues, músicas que nenhum deles propriamente inventou mas que contribuíram decisivamente para fixar e standardizar. Handy foi também uma espécie de etnomusicólogo, recolhendo e anotando uma série de temas que músicos anónimos negros iam tocando itinerantemente pelo sul dos Estados Unidos, à guitarra e ao banjo, e por vezes ao piano, durante o século XIX e princípios do XX. Este disco é uma jóia, e claro que lá estão aquelas que Eric Hobsbawn (também um grande crítico de jazz) considerou como algumas das melhores composições de Handy: «St. Louis Blues», «Memphis Blues», «Yellow Dog Blues» e «Beale Street Blues», datadas de 1912-16. Armstrong (trompete e voz) está soberbo, acompanhado por Velma Middleton (voz), Trummy Young (trombone), Barney Bigard (clarinete), Billy Kyle (piano), Arvell Shaw (contrabaixo) e Barrett Deems (bateria). Nas preciosas notas da contracapa, George Avakian dá-nos este testemunho do «pai dos blues»: «"I never thought I'd hear my blues like this." W. C. Handy said again and again. "Truly wonderful! Truly wonderful! Nobody could have done it but my boy Louis!"»
Seara Vermelha. Estou a meio do livro. Leio o Jorge Amado desde a adolescência. Tenda dos Milagres, a deliciosa história de Pedro Archanjo, foi a obra que me introduziu no universo deste grande brasileiro. Hoje quase que lamento não ter a pureza dessa época em que me deixava envolver pela surpresa e pelo estupor que me instilava a crua realidade encerrada nos livros do autor de Jubiabá.
Humanidade
A doçura daquela
voz a tristeza daqueles
olhos o calor da
trompete de
Armstrong o segregado
desmentindo o ódio