Adubo. O talento dos autores a que nos dedicamos é uma espécie de adubo que nos faz medrar. A nossa pequena notoriedade ganha-se à sua custa.
Castro em Vila Franca (6 e final). Toda a obra de Ferreira de Castro está, pois, impregnada desse anarquismo. Ele é um libertário destacado, todos o sabiam na I República pelas posições tomou; todos continuaram a sabê-lo durante o Estado Novo, tanto na situação como na oposição. E sabiam-no os leitores.
O ponto de vista libertário está nos seus livros, não apenas desde Emigrantes, um manancial de assuntos, a começar pela questão da propriedade até ao tema da (ir)relevância da nacionalidade do proletário. Mas este questionamento, esta incomodidade de um escritor que se fez a si próprio num mundo espúrio, vem já desde esse ingénuo Criminoso por Ambição. E esse ponto de vista contempla o desdém pelo jogo político, o antitotalitarismo, o antimilitarismo, o anticolonialismo.
Idealista, fez uma profissão de fé num futuro redentor. Esse idealismo não estará, contudo, isento dos perigos das utopias que transformaram ideias libertadoras em sistemas de encarceramento. Parece-me, porém, que o libertário Ferreira de Castro, rebelde e inconformista, duma rebeldia viril sem autocomiseração, dificilmente cairia na armadilha dos pensamentos únicos.
Nota:
Serão lidas passagens de Emigrantes, Os Fragmentos e das «Mensagens» de apoio às candidaturas do MUD (1946) e de Norton de Matos (1949).
Castro em Vila Franca (5).
Castro em Vila Franca (4). Seguiu-se A Selva (1930). Livro intenso, poderoso, escrito com as entranhas, fruto da vivência dramática do seu autor, A Selva, aborda também um gravíssimo problema económico e social, o dos «retirantes» fugidos à seca no Ceará e no Maranhão em demanda de outros lugares que lhes permitissem viver, mas que no fundo só conheceriam um quotidiano de exploração e miséria. Tratando este assunto, Castro acabou porém por consagrar a floresta virgem como verdadeira e principal personagem, a realidade totalitária que esmaga o indivíduo, tornado um mero títere ao sabor do relacionamento imprevisível que os elementos vegetais estabelecem entre si naquele universo.
Uma amiga que parte. Estou a passear pelos meus blogues favoritos e leio a notícia brutal num texto belo e triste. A Cristina Futscher Pereira, autora de «O Divino Almeida Garrett»
(http://odivino.blogs.sapo.pt/) morreu. Não a conhecia, mas acompanhava o seu Garrett desde que comecei a frequentar estas paragens. Notável o seu trabalho e dedicação. Cheguei inclusivamente a pensar criar um blogue semelhante para o meu Ferreira de Castro. Um dia, quem sabe, talvez siga o seu exemplo. Por agora, fica a minha homenagem e a minha lembrança.
Jorge Reis. Tão calão, meu deus, e estupidamente distraído, que não tive a sensatez de escrever as duas linhas que se me impunham sobre o Jorge Reis, há dias enterrado no Père-Lachaise, e com quem privei várias vezes aqui em Cascais, onde ele tinha uma casa. Que figura!, que histórias!, que cultura!, que vida! O Matai-vos Uns aos Outros, prefaciado pelo Aquilino Ribeiro, é o seu livro mais conhecido, um thriller interessante, a escrita cuidada, noblesse oblige, pois então... Encomendem e leiam A Memória Resguardada (Editorial Escritor): o exílio e a clandestinidade: sobre a nudez forte da fantasia, o manto diáfano da realidade... Jorge Reis (pseudónimo de Atilano dos Reis Ambrósio), militante do PCP nos anos 40, muito indisciplinado ao que parece; sempre compagnon de route; amigo até às lágrimas de Vasco Gonçalves; maçon de grau trinta e... Uma vez convidei-o para falar, numa conferência cá em Cascais, sobre o autor de Andam Faunos pelos Bosques, que ele muito justamente idolatrava. «Paris, berço da língua de Aquilino?», era a pergunta e a tese dessa palestra, noite memorável na velha Torre de São Sebastião (Museu Condes de Castro Guimarães), casa cheia, Aquilino Ribeiro Machado presente, o Jorge Reis a falar sabiamente, apaixonadamente, calorosamente. Durante a conferência tirou uma pequena garrafa de uísque do bolso, e durante toda a sessão, enquanto falava com os circunstantes, tinha-a bem segura nas mãos, despejando de vez em quando o conteúdo no copo destinado à água do Luso.... Esta conferência está publicada, felizmente. O espólio dele -- o Jorge era de Vila Franca de Xira, terra de escritores!... --, espera-se que vá para o Museu do Neo-Realismo, que oportunamente lhe consagrou uma merecida exposição. Lembro-me doutra conferência memorável dele sobre o Dom Quixote, que pelo menos está gravada. Adorava os filetes de pescada do «Correio», na Areia, os melhores do mundo, dizia-me. O Jorge Reis deixou uma grande obra por fazer, notam os comentadores. Em quantidade, certamente. O que se dirá daqui a cem anos do Matai-vos Uns aos Outros e de A Memória Resguardada? Não estaremos cá para ler...
Castro em Vila Franca (3). Sem qualquer conhecimento no meio jornalístico, resolveu permanecer em Lisboa, recomeçando do zero. Durante anos free lancer, condição em que foi eleito presidente do Sindicato dos Profissionais da Imprensa de Lisboa, colaborou incessantemente com reportagens, crónicas, contos, entrevistas nos principais órgãos da imprensa portuguesa dos anos vinte. Esta fase da sua vida, Ferreira de Castro evocou-a algumas vezes, uma das no texto em que recordou o grande amigo Reinaldo Ferreira, o célebre «Repórter X»:
«Sem honorários fixos, mal retribuídos os trabalhos avulsos, tínhamos de escrever por mês, para vivermos, dezenas e dezenas, mais, muito mais duma centena de artigos, novelas, contos e crónicas, que publicávamos em numerosíssimas revistas e jornais de Lisboa, ilhas, colónias e Brasil.» (O Livro do Repórter X, Lx., 1936)
Ao mesmo tempo ia editando uma série de títulos que viria a eliminar da sua tábua bibliográfica, por terem deixado de representar a sua maneira de se exprimir. Mas... (1921), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil, Sangue Negro (1923), A Boca da Esfinge (com Eduardo Frias, 1924), A Morte Redimida, Sendas de Lirismo e de Amor (1925), A Epopeia do Trabalho, O Drama da Sombra, A Peregrina do Mundo Novo (1926), A Casa dos Móveis Dourados e O Voo nas Trevas (1927) são os livros desta primeira fase, hoje só encontráveis em alfarrabistas, com raridade.
Estes livros reflectiam, por um lado a contemporaneidade conturbada da década, os anos da velocidade, a idade do jazz-band, como lhe chamou António Ferro, outro dos seus grandes amigos de então, um frisson magazinesco que corria em paralelo com temas que hoje classificaríamos como «fracturantes»: feminismo, racismo, eutanásia... Por outro lado, assistimos a uma motivação ideológica que se manifesta principalmente em jornais como A Batalha e revistas como Renovação, ambos da central sindical anarco-sindicalista CGT.
Esta tensão virá a desembocar no final da década (1928) no romance Emigrantes, em que o autor pretende dar voz aos que não têm voz, historiar aqueles que não têm lugar nas crónicas oficiais. Daí o nome colectivo do romance e da personagem principal,Manuel da Bouça, uma personagem arquetípica. No prefácio da 4ª edição escreverá:
«Biógrafos que somos das personagens que não têm lugar no Mundo, imprimimos neste livro despretensiosa história de homens que, sujeitos a todas as vicissitudes provenientes da sua própria condição, transitam de uma banda a outra dos oceanos, na mira de poderem também, um dia, saborear aqueles frutos de oiro que outros homens, muitas vezes sem esforço de maior, colhem às mãos cheias.» [Emigrantes, 24ªed., Lx, pp. 14-15.]
(continua)
Castro em Vila Franca (2). «Foi esse momento tão extraordinariamente grave para o meu espírito, que desde então não corre uma única semana sem eu sonhar que regresso à selva, como, após a evasão frustrada, se volta, de cabeça baixa e braços caídos, a um presídio.» [«Pequena história de "A Selva"», A Selva, 32ª ed., Lx., p. 19]
Apesar de ter feito o seu tirocínio na extracção gomífera, até 1914 Castro exerceu essencialmente as funções de caixeiro do seringal, pela feliz circunstância de saber ler, escrever e contar, subtraindo-se, assim, ao rigor da extracção do látex no meio da brenha, condicionalismo que talvez fosse fatal para uma criança ainda tão pequena.
Na Amazónia começou a escrever para jornais regionais, portugueses e brasileiros, e lá redigiu o primeiro romancinho, intitulado «Amor de Simão», cujo título definitivo viria a serCriminoso por Ambição, o primeiro da sua bibliografia, dado à estampa em fascículos em Belém do Pará no ano de 1916, vendidos pelo autor de porta em porta...
Logrando sair da selva, ao contrário de muitos que por lá ficaram presos às dívidas que contraíram ou debaixo daquela terra perigosa, o jovem Ferreira de Castro teve muito que penar antes de conseguir alguma estabilidade. Foi um sem-abrigo em Belém, recorreu a diversos biscates, colou cartazes, embarcou num navio que fazia o curso de cabotagem entre a capital do Pará e a Guiana Francesa. O tempo de que dispôs, empregou-o na biblioteca pública belenense, onde se autoeducou lendo os clássicos.
A pulso enveredou pelo jornalismo, tendo, em 1917, fundado e dirigido um semanário destinado às comunidades lusas de Belém e Manaus, intitulado Portugal. Entretanto havia publicado uma pequena peça, Alma Lusitana (1916), com o conflito luso-alemão de Naulila em pano de fundo.
O regresso de Ferreira de Castro não está ainda completamente esclarecido, tanto mais que conseguira alguma projecção como jornalista e literato nesses estados brasileiros de forte presença portuguesa. A explicação mais plausível e natural será a do peso da saudade que sobre ele se terá exercido, saudade da família e da terra natal que visitará logo após a sua chegada a Lisboa, em 1919.
(continua)
Castro em Vila Franca (1). Na primeira metade do século XX houve um nome que se destacou por uma atitude cultural, cívica e moral, tornando-se num ponto de referência sem paralelo duma ética libertária entre nós. E por diversas razões:
Em primeiro lugar, a circunstância de este nome, que é o de Ferreira de Castro, ser simultaneamente um autor de larguíssima audiência interna, e também o mais lido o mais traduzido do seu tempo, proeminente durante cerca de quarenta anos -- um tempo imenso. Esta difusão dos seus livros, além dos seus textos de ocasião, das suas entrevistas, dos seus depoimentos amplificavam a mensagem essencial de liberdade que perfilhou.
Outro aspecto que contribuiu para tornar Ferreira de Castro num caso à parte foi a circunstância de ele, anarquista e escritor, aparecer, senão isolado, pelo menos muito minoritário na cena cultural portuguesa, em que dominavam, por um lado, a acção oficial e oficiosa do Estado Novo, em especial através de António Ferro e do Secretariado da Propaganda Nacional, e por outro uma cultura de oposição em que se procurava hegemonizar um cânone neo-realista, configurado pelos jovens intelectuais ligados ao PCP. Após o 28 de Maio de 1926, o anarquismo e a sua vertente sindicalista, muito forte entre nós, definha inexoravelmente; na década de trinta, o atentado contra Salazar, protagonizado por Emídio Santana, e a greve-geral da Marinha Grande, já com o concurso de militantes comunistas, são uma espécie de canto do cisne do libertarismo organizado. Isto sem embargo das correntes minoritárias, com maior ou menor importância cultural e literária, dos republicanos históricos aos antigos integralistas, e de gente que circulava entre um e outro lado. E havia ainda os que não se misturavam, não por sobranceria mas por razões de princípio. Lembremos o caso de José Régio, um caso exemplar, um dos mais notáveis escritores portugueses do seu tempo e a forma como ele teve de lidar com as pressões de um e de outro lado, pese embora os protestos da maior admiração e respeito que ambos os lados faziam, o que, ironicamente, por vezes era até verdade...
José Maria Ferreira de Castro nasceu a 24 de Maio de 1898 nos Salgueiros, uma aldeia da freguesia de Ossela, concelho de Oliveira de Azeméis, filho de caseiros humildes.
A infância, marcada pela morte do pai, decorreria, contudo, com uma previsível normalidade, até à altura em que, engrossando a tradicional corrente migratória para o Brasil, se decide pela ida para a antiga colónia, corria o ano de 1911. Ao que parece, uma paixoneta juvenil não correspondida por uma rapariga muito mais velha, Margarida, levaram-no à audácia duma decisão inusitada para uma criança ainda imberbe de doze anos incompletos.
Chegado a Belém do Pará já no período da crise da borracha, recomendado a um vago parente que não o amparou como seria de esperar, foi o pequeno Zeca mandado para o seringal «Paraíso», em plena floresta virgem, nas margens do rio Madeira, braço do Amazonas. Nesse magnífico texto de memórias que é a «Pequena história de "A Selva"», Castro lembrou, dolorosamente:
(continua)
Lá vem ele outra vez. A Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo e a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira vão levar a cabo uma exposição sobre o Ferreira de Castro e tiveram a gentileza de convidar-me a proferir umas palavras sobre o autor de A SELVA. Dia 18 de Outubro de 2005, às 18 horas, na Biblioteca Municipal (estão todos convidados).
A exemplo do que fiz para o Congresso Internacional sobre os 75 Anos de «A Selva», vou maçar-vos e alinhavar aqui umas generalidades, tal como generalista é o tema proposto: «Ferreira de Castro, Vida e Obra.»