Comparar o incomparável. Anne Frank teria hoje 73 anos. Ela foi bem real, há amigos e conhecidos que ainda a recordam. O mesmo se passa com a memória de uma parte dos seis milhões de homens, mulheres, crianças, velhos. O seu assassínio a sangue frio -- tal como a execução em matadouro de ciganos, deficientes, homossexuais -- muitas vezes perpetrado com a frieza funcionária que apenas cumpre ordens, ficará como uma das evidências pouco abonatórias da nossa miserável condição humana. Não quero com isto significar que o Holocausto não possa ser objecto de uma abordagem humorística e satírica. Um notável cartoon de António, há bastantes anos, sugeria que a vítima se tinha tornado em algoz, os judeus israelitas apareciam como carrascos dos palestinianos. É um grande cartoon, concordemos ou não.
Mas...
Nem pensar em comparar o incomparável. É obsceno e revelador da porcaria mental do fanatismo. As pessoas de carne e osso que foram trucidadas pelos nazis têm peso, existiram, somos contemporâneos da sua presença. Abstracções como pastores de camelos, ou filhos de carpinteiros, tocados pelo divino, ficções por mais respeitáveis que sejam as pessoas que nelas crêem, estão por mim relegados para o estatuto do irracional, da milagreirice, das aparições; são para ser discutidas nas igrejas, nas mesquitas, nas sinagogas e não na rua, onde o ar circula. Não me sinto, portanto, obrigado a ser equilibrado e isento no juízo de ambas as manifestações humorísticas. Não seria honesto, não seria decente.
[s/título] As bibliotecas públicas não aguentam os nossos livros.
Magasin Général. Magasin Général, de Loisel e Tripp, em curso de publicação na BoDoï, é da melhor BD que tenho lido ultimamente. Argumento consistente, desenhos à altura. Um must da Casterman.
Telosnossítio [na primeira página do Charlie Hebdo, Maomé chora por ser adorado por imbecis -- cartton de Cabu]. Por cá gosta-se de BD. Tanto que corri ao sítio do Charlie Hebdo para ver la une. Parece que o tema deste número é Telosnossítio, uma obra colectiva.
Dona Janis Joplin. Segundo o sítio de genealogia Genea Portugal, Janis Joplin terá sido descendente de D. Afonso Henriques... Perante isto, não sei o que dizer; mas cabendo-me um quinhão de parentesco com o fundador da nacionalidade, como queria o historiador e genealogista D. Luís Gonzaga de Lancastre e Távora, marquês de Abrantes -- segundo o qual, praticamente todos os portugueses são descendentes do Conquistador --, só me resta impar de contentamento, pelos laços que nos ligam a uma das melhores e mais lindas coisas que os Estados Unidos deram ao mundo!...
[A propósito dos tumultos após a publicação, na Dinamarca, dos cartoons de Maomé] Não estou muito interessado em saber se a decisão de publicar as caricaturas de Maomé pelo jornal dinamarquês teve por base uma atitude sensacionalista e oportunista. (Nesta altura do campeonato já me são irrelevantes os eventuais propósitos racistas e xenófobos do tal Correio da Jutlândia, por mais odiosos.) O que me importa é a firmeza que a Europa deve demonstrar contra o fanatismo a minar-lhe a casa.
Um bom exemplo dessa firmeza é a controversa «lei do véu» francesa, tão mal vista pelos arautos do politicamente correcto, prontos, em nome não se sabe bem de quê, a subvalorizar a situação das mulheres islâmicas na França dos subúrbios, fortemente coagidas a cobrirem-se, intoleravelmente condicionadas na sua vivência quotidiana, por muito que os activistas islâmicos o queiram negar.
A Europa é uma realidade complexa que se construiu na base do seu autoquestionamento. Dizer Europa é, apesar de tudo, dizer laicidade, pensamento livre. Dentro das suas fronteiras -- nas da União Europeia, pelo menos --, deve opor-se, com todo o vigor, à censura, à chantagem e ao medo. E se em nome da liberdade permite aos muçulmanos que vivem no seu seio o maior respeito pelas suas tradições, não pode mais ser tolerante para com as práticas que colidam com a liberdade de todos os cidadãos, cristãos, muçulmanos, ateus ou animistas. Quem assim não compreender, sendo estrangeiro, não tem lugar entre nós, e terá de ser deportado, naturalmente; se for nacional e se servir das crenças para atentar contra a liberdade dos seus concidadãos, tem de ser criminalizado.
Nas últimas décadas, as nações livres opuseram-se e derrotaram o nazismo, serpente gerada no seu seio; derrotaram uma abstracção para-religiosa denominada comunismo soviético que, pretendendo criar um paraíso na terra para o «homem novo» por si gerado, redundou na monumental mentira dos gulags e da burocracia. O combate terá de ser feito de novo cá dentro, higienicamente, sem guerras de religião nem tiro ao mouro, com toda a firmeza, porém, sem complexos colonialistas, que para esse peditório já muitos países europeus deram! A agitação das massas em fúria provém, é verdade, da manipulação política feita por aqueles a quem aproveita um «Ocidente» mantido em sentido. Os governos dos países com uma larga minoria islâmica terão naturalmente de lidar com sabedoria e prudência em face da turba excitada; mas os instigadores terão de ser reprimidos. É para nós uma questão de sobrevivência.
O Haydn de Armstrong? Acontece-me estabelecer um paralelismo, muito pessoal e sem nenhum rigor, quando oiço ou penso em Sidney Bechet -- crioulo de Nova Orleães, figura cimeira das primeiras décadas do jazz, como músico principal ou acompanhante (no sax soprano ou no clarinete) e compositor (Petite Fleur é um tema conhecido em todo o mundo). Quando oiço Bechet, lembro-me de... Haydn, desse outro compositor de excepção, austríaco e cerca de século e meio mais antigo, com as suas cento e algumas sinfonias, além de muitas outras obras, das sonatas aos quartetos, concertos e oratórias. Para nosso bem, mas póstuma desvantagem (?) sua, Haydn e Bechet foram, respectivamente, contemporâneos de Mozart e Armstrong. E como as genealogias em arte se constroem (im)pacientemente, sem que se saiba quando o génio toca algum dos rebentos nos ramos das suas árvores, eis que um discípulo directo de Haydn surge e, milagre!, é dos poucos escolhidos que em toda a história da música conseguirá ombrear com Amadeus: Beethoven. No jazz as coisas então passavam-se de modo diferente, a transmissão de conhecimento era informal nas academias dos pobres. Teve Bechet o seu Beethoven no mundo da música improvisada afro-americana? Se ele for o Haydn de Armstrong, quem terá sido o seu Beethoven? Coltrane?
Consciência. Os mais vis criminosos são os que não têm consciência do seu crime.
Obrigado e grato. Nada tenho contra os críticos. A meia dúzia que escreveu sobre os meus livros, elogiou-os.
Com o pé direito. Acabou-se. Manuel Alegre não foi eleito. Mobilizou mais de um milhão de eleitores, por razões várias. Quanto a mim, votei num homem com um passado honroso e num cidadão que soube estar nos momentos essenciais do lado certo da História. E votei no escritor. A meu ver, Manuel Alegre poderá continuar a prestar bons serviços ao país na acção política, no PS e na Assembleia da República, sabendo fazer valer o peso granjeado nesta eleição. Portugal também precisa dele, não em movimentos residuais de protesto, mas no centro do poder.