Quarta-feira, 7 de Julho de 2021

2.3.2007

Jaime Brasil. Quando eu era pequeno, passava de vez em quando pelo escritório e demorava-me nas prateleiras das biografias. Eram as grandes figuras por todos conhecidas, do Beethoven de Emil Ludwig ao Disraeli de André Maurois, passando por um diabólico Átila, o Huno, cujo nome do autor se me varreu. Havia, porém, um volume que me chamava a atenção, logo pelas letras impressas na lombada, dum vermelho vivo sobre o branco sujo do papel («Olha-me a estante em cada livro que olha.», escreveu o poeta brasileiro Pedro Kilkerry...), e pela circunstância de ser dos poucos, ou mesmo o único naquela secção, cujo nome eu podia ler sem dificuldade: tratava-se de Leonardo da Vinci e o Seu Tempo, numa boa edição da Portugália, publicada em Lisboa, no ano de 1959. O seu autor era Jaime Brasil, e começava desta forma: «Assim como há pessoas com sorte e outras toda a vida malfadadas, certas cidades parece terem surgido sob um signo feliz.»
Anos mais tarde, o nome de Jaime Brasil aparecia-me quase invariavelmente ligado a este género histórico-literário-ensaístico, tão negregado pelos epígonos nacionais da historiografia da revista Annales. De Zola a Balzac, de Victor Hugo a Diderot, de Velázquez a Rodin e Ferreira de Castro...
O privilégio que tenho de trabalhar no espólio do autor de A Selva permitiu que tomasse contacto com quarenta anos de correspondência de Brasil para Castro, e pudesse apreciar um epistológrafo de primeira água, a par do jornalista e do demiurgo que pôs em letra de forma a vida daqueles que se propôs evocar.
Encontrei um homem difícil, como todos os que com ele privaram reconhecem, impregnado de um pessimismo que só a arte e o amor em sentido lato podiam contrariar. Mas é justamente esse sentimento de fraternidade e partilha deste individualista notável que permite compreender a adequação interior a um ideal libertário presente nos seus escritos. A ele se pode aplicar a autodefinição de Romain Rolland, que se dizia racionalmente pessimista, mas optimista pela vontade.
E encontrei também um dos maiores epistológrafos portugueses. A correspondência de Jaime Brasil, não pensada para a publicação, seduz pelo brilho, a desenvoltura, a coloquialidade que logrou alcançar, como se de conversa efectiva se tratasse, para além de uma variedade de informações que nos dá.
Mas a carta funciona muitas vezes como um S.O.S de náufrago, de pedido de socorro de desterrado, seja no exílio, no cárcere ou no meio adverso de quem se encontra rodeado de seres de outro planeta, que de semelhante têm apenas a aparência. Essas solidões cheias de gente à volta são por vezes as mais dolorosas, e este epistolário é disso mesmo um testemunho amargo. É nos períodos de maior agudeza nas contariedades que surge um descarnamento que impressiona pelo modo como o auto-isolamento de Brasil é assumido. «A pobre rã que sou voltou a cair no charco.», escreve a Ferreira de Castro em momento de maior desalento. Esta circunstância, que não poucas vezes o leva ao sarcasmo mais brutal, não deixa em segundo plano a ironia, que nele é um traço estilístico distintivo.
Vejamos a Carta LXVII, datada de Paris, em 2 de Novembro de 1949 (pp. 117-120). Depois de aludir ao seu «estado depressivo», semelhante, de resto, ao que Castro lhe manifestara na missiva que lhe enviara, Brasil vê na troca de correspondência uma terapia para ambos:
«Escrevendo-lhe tenho a impressão de que converso consigo e até a ilusão de lhe poder ser útil, para ajudar a dissipar a tristeza que a sua carta reflecte.»
Parece que a depressão de Ferreira de Castro se devia, pelo menos em parte, à morte do editor já de longa data, Paulo Martins Cabral, que fundara, com Delfim Guimarães, a casa que era a sua desde o início dos anos trinta e que ainda hoje dá a chancela ao seus livros. Sabendo que as relações entre os editados e quem os publica nem sempre são as melhores -- onde há dinheiro, normalmente há também vilania --, Jaime Brasil procura consolar o seu interlocutor deste modo:
«Não desejaria que se entristecesse com a morte do Martins. Viveu uma longa vida durante a qual realizou decerto todas as suas ambições. Deve ter sido uma criatura feliz, na sua mediocridade de avarento, sem inquietações outras que não fossem arrecadar cada vez mais dinheiro. Deveria estar convencido de que era um grande trabalhador, pois escrevia ele próprio as cartas e as facturas da loja. Isso devia causar-lhe um grande orgulho. / Fez-lhe mais uma mesquinhice pouco antes de partir? Quantas não lhe fez desde que trabalhava para ele? De algumas soube eu. Outras calou-as o Castro por pudor; mas não era difícil supô-las. O pilriteiro só sabe dar pilritos. Os seres mesquinhos, medíocres, pequeninos, não podem produzir mais nada do que as flores do seu jardim. Não são nossos semelhantes. Nisto concordo com o bruto do Jorge Amado: a humanidade divide-se nos nossos semelhantes e nos outros. O desaparecimento destes não deve causar-nos abalo. Não valem os miligramas de sais duma lágrima.»
Este desabafo sarcástico prossegue, aproveitando Brasil para dar conta da expulsão de Jorge Amado, então militante do PCB no exílio, do território francês, situação que para o signatário «confirma o reaccionarismo disto aqui. Parecem apostados em dar razão aos comunistas.» O próprio Jorge Amado lembrou décadas mais tarde, numa longa entrevista a Alice Raillard, a sua condição de peão da Guerra Fria neste termos: «Guerra Fria quer dizer, os americanos impunham a sua vontade. Faziam chuva e sol, eram os patrões da França. Esta era a realidade até à chegada de De Gaulle.» Tal como sucedera já com a II Guerra, este foi um dos temas correntes das conversas epistolares de ambos. Veja-se como Jaime Brasil dá conta das dissensões entre Tito e Stálin, o aproveitamento por parte dos americanos com o Plano Marshall e os efeitos perversos que a luta contra o bloco soviético trazia para a manutenção da ditadura de Salazar (e de Franco), com alusão a mais uma fraude eleitoral acabada de ocorrer em Portugal:
«Afligem-no as más notícias dos jornais. Também a mim. As fricções na fronteira da Sérvia são de mau prenúncio. O rastilho pode começar a arder ali. Ainda se deixassem os marechais comerem-se um ao outro bem estava. O marshallismo, porém, deu-lhe para proteger os mais repugnantes ditadores, desde que isso lhe pareça útil para atingir o nº 1. Daí os tristes espectáculos da Sérvia e aquele que, mais recentemente, se deu no Extremo Ocidente
A auto-ironia, muito acentuada, tem também lugar aqui. Em situação precária em Paris, após uma surtida de enviatura ao serviço do jornal, que pretendia alargar para a situação de correspondente, sem que os patrões estivessem nessa disposição, num braço-de-ferro desigual, as dificuldades de Brasil são de monta, mas é notável como ele consegue sorrir do seu próprio desamparo:
«Por deferência para com a nossa amiga M. Paz, fui assistir à primeira conferência de Service de l'Home, sobre o problema da alimentação mundial. Jantara nesse dia um café e um croissant, para poupar cem francos para o dia seguinte; mas à entrada da conferência pediram-me os cem francos... Cómico, não acha?, sobretudo tratando-se do problema da alimentação.»
Este já vai demasiado extenso (como epistolarmente se diria). Uma nota apenas para acrescentar que o livro é mais um testemunho e um acrescentar de volume à identidade escondida e ocultada de uma geração literária e cultural anarquista, que teve em Ferreira de Castro porventura o seu maior expoente (Julião Quintinha, Assis Esperança, Roberto Nobre, entre outros são igualmente nomes a considerar), e que se viu remetida para uma situação de insularidade interna, à medida que o o Estado Novo se institucionaliza e o pujante anarco-sindicalismo da I República é definitivamente derrotado na Revolta da Marinha Grande, progressivamente substituído pelo PCP na luta contra a situação. Foi uma guerra sem tréguas, com danos colaterais. O anarquismo em Portugal passaria a ser uma atitude, um conjunto de tertúlias, algumas associações. Mas essa é outra conversa.
publicado por RAA às 13:46
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Sábado, 25 de Março de 2017

10.2.2007

Magistério. Em Haydn eu oiço nitidamente o seu discípulo Beethoven.

publicado por RAA às 21:19
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Quinta-feira, 5 de Novembro de 2015

30.1.2006

O Haydn de Armstrong? Acontece-me estabelecer um paralelismo, muito pessoal e sem nenhum rigor, quando oiço ou penso em Sidney Bechet -- crioulo de Nova Orleães, figura cimeira das primeiras décadas do jazz, como músico principal ou acompanhante (no sax soprano ou no clarinete) e compositor (Petite Fleur é um tema conhecido em todo o mundo). Quando oiço Bechet, lembro-me de... Haydn, desse outro compositor de excepção, austríaco e cerca de século e meio mais antigo, com as suas cento e algumas sinfonias, além de muitas outras obras, das sonatas aos quartetos, concertos e oratórias. Para nosso bem, mas póstuma desvantagem (?) sua, Haydn e Bechet foram, respectivamente, contemporâneos de Mozart e Armstrong. E como as genealogias em arte se constroem (im)pacientemente, sem que se saiba quando o génio toca algum dos rebentos nos ramos das suas árvores, eis que um discípulo directo de Haydn surge e, milagre!, é dos poucos escolhidos que em toda a história da música conseguirá ombrear com Amadeus: Beethoven. No jazz as coisas então passavam-se de modo diferente, a transmissão de conhecimento era informal nas academias dos pobres. Teve Bechet o seu Beethoven no mundo da música improvisada afro-americana? Se ele for o Haydn de Armstrong, quem terá sido o seu Beethoven? Coltrane?

publicado por RAA às 22:46
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